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    13-03-2017

    O desafio do pluralismo religioso

    Charles Mady

    Charles Mady é professor associado da Faculdade de Medicina da USP e diretor de unidade do Incor

    As religiões e crenças em entes místicos dominam a mente dos povos desde que os seres humanos habitam este nosso minúsculo planeta. Mitos quase impossíveis de serem comprovados, apesar dos intensos esforços de arqueólogos, determinam muitas vezes as atitudes das variadas religiões, movendo sociedades para o bem ou para o mal, triunfando sobre as formas mais racionais de espiritualidade.

    Os mitos geram devoções a lugares tidos como santos, e suas adorações constituem, de acordo com as crenças, manifestações de fé. Nos últimos tempos, está havendo um triunfo de mitos sobre a razão. Como exemplo, para judeus, cristãos e muçulmanos, Jerusalém é o símbolo do divino.

    Hoje, a discussão sobre quem tem direito a esse símbolo ultrapassa temas fundamentais para o futuro de nosso planeta. Um bem da humanidade passa a ser motivo de discórdias sobre qual das religiões é a “verdadeira”, relegando outras a um plano secundário, com radicalizações inconcebíveis em sociedades tidas como desenvolvidas. O sagrado não deveria ter preferências, pois não seria assim sagrado.

    As religiões deveriam reconhecer sua presença em cada ser humano, não admitindo o seu sacrifício, por mais apaixonado que seja seu motivo. Elas se assemelham às artes, na capacidade de fazer transcender nossas mentes a um plano mais elevado. Entretanto, a dimensão ética das religiões deveria diferenciá-las das artes, que podem ser aéticas, incorporando condutas em relação aos outros. Todas enfatizam a prática da compaixão, da caridade e da justiça social acima de tudo, como prova de verdadeira devoção. Portanto, o local só poderia ser sagrado se tivesse justiça e tolerância para com  todos.

    As religiões não deveriam se distanciar pelas diferenças dogmáticas, mas se aproximar pelas semelhanças para que a humanidade, apesar de diferentes visões, atingisse um equilíbrio, um denominador comum. Abrão precedeu o judaísmo, o cristianismo e o islamismo, mas lançou sementes comuns a todos os “Povos do Livro”. Sua religião era apenas a crença no Deus único, sem dogmas, obrigações ou leis. Como consequência, gerou linhas de pensamento mais semelhantes do que divergentes entre as fés atuais. As diferenças são o varejo dos textos, e as semelhanças o atacado. Infelizmente, destrói-se pelo varejo, que é um caminho muito mais curto e fácil, que um trabalho baseado em um diálogo construtivo.

    Quanta destruição já se realizou em nome de Deus, por fundamentalistas que só seguem os ensinamentos de ódio, vingança e violência das Escrituras. O meu, o teu, o seu Deus é um só, e suas lições fundamentais são únicas, comuns a todas as crenças. Será que uma religião poderia se arvorar em proprietária de Deus e ser adorada por esse fato? Não será isso idolatria? Não deveríamos cultuar Deus antes das religiões? Estas são criações recentes, humanas, posteriores à Sua existência. Parece que o ser humano adora a sua religião mais do que a Deus, que deveria ser o objetivo da vida, um fim em si, e não pertencente a um, entre tantos, sistema de culto. Não deveria ser o meio para demonstrar a “minha” verdade.

    Ezequiel, como Pascal, um homem da era axial, via o sagrado como um mistério grandioso demais para a humanidade. “Deveis amar vosso semelhante como a vós mesmos.” Que adeptos de qual religião hoje respeitam isso? “Se um estrangeiro vive convosco, em vossa terra, não o molestais.” Em nome de uma pretensa sobrevivência, esses conceitos bíblicos têm sido massacrados por adeptos de todas as religiões.

    Jeremias foi além, dizendo que as leis não deveriam mais ser inscritas em tábuas de pedra, mas no coração das pessoas. Buda entendeu que não era necessário entrar em um templo ou qualquer área tida como sagrada para atingir a realidade suprema. Era apenas necessária a compaixão, e não símbolos. Hillel, da mesma forma, dizia que “o que for detestável para ti, não o faças a teu próximo. Toda a Torá consiste nisso. O resto é comentário”.

    Uma ponte entre as variadas crenças monoteístas está no Levítico, onde se lê: “Não te vingarás e não guardarás rancor”. Esses preceitos são dirigidos a todos os seres humanos. São preceitos de espírito, e não de letras. De nada vale a obediência cega às letras, se não se gera justiça. Trata-se de uma fé “cínica” no sentido da escola cínica grega.

    A Cidade de Deus não deveria estar aberta a todos, conforme sugeriu Zacarias? Javé proclamou: “Minha casa será uma casa de oração para todos os povos”.  Excluir contradiz uma das mais importantes tradições das religiões. Podemos, ou devemos, respeitar uma sinagoga, uma igreja, uma mesquita ou qualquer outro templo, enfim, uma construção humana, mais que seres humanos que estejam fora delas?

    O respeito pelo diferente deveria indicar a integridade de uma crença. Uma das tragédias das religiões é que nem sempre atuam de acordo com os seus mais caros ideais. Pode ser que não haja sociedade que resista sem religião, mas seguramente não há sociedade que resista sem justiça. Se determinada crença não gerar justiça, apenas mitos, então não deve ser encarada como construtiva.

    Na era axial, definida por Karl Jaspers, alguns dos maiores doutrinadores da humanidade, cada qual a seu modo, estabeleceram princípios éticos que são válidos até hoje. Prepararam o caminho para o culto universal ao Deus único e o entendimento entre as variadas crenças. Infelizmente, suas lições não estão sendo bem aproveitadas.

    Com a evolução das civilizações, Deus está para muitos perdendo seu crédito, devido aos enormes erros cometidos em Seu nome, tema muito bem abordado por Karen Armstrong, em seu livro Em nome de Deus. Os adversários representam o “Império do Mal”, que levarão nossa “superior” civilização a todos, sem respeitar suas tradições e culturas, com as consequências que todos sabemos.

    Na idade da razão, a separação entre religião e política tornou-se importante para o desenvolvimento das sociedades, compreendendo-se que os radicalismos e fundamentalismos, tanto políticos como religiosos, eram deletérios. Infelizmente, essa associação persiste até hoje em todas as crenças, muitas vezes associada a totalitarismos e teocracias.

    Partidos teocráticos determinam resultados de eleições, pretensamente democráticas. Seus protagonistas utilizam os argumentos de Josué mais que os de Isaías. Os deuses do ódio, das guerras, da vingança das Escrituras predominam sobre o Deus único da paz, da compaixão, da tolerância. Julgam-se todos eleitos, tendo o direito de atuar de acordo com os seus melhores e piores interesses, em nome de seus deuses, sem se importar com as necessidades alheias. O Ocidente “cristão” empreendeu recentemente uma nova cruzada, destruindo e humilhando países inteiros.

    As reações foram e estão sendo extremamente violentas, cruéis, desumanas, também em nome de seus deuses, surgindo no Ocidente um novo tipo de racismo, de sectarismo, de antissemitismo, a islamofobia. O “mal” está sendo pago com o “mal”. Outra consequência devastadora é a migração de refugiados, tão indesejados como foram os judeus na Europa. Se não tivessem ocorrido essas destrutivas intervenções militares, esses grupos islâmicos fanáticos existiriam? Ninguém nasce fundamentalista ou terrorista, como alguns querem que seja verdade. A tragédia no antigo Congo Belga, com milhões de mortos e mutilados, efetuada por um rei cristão, de uma sociedade tida como civilizada, é de fazer inveja aos tiranos europeus e soviéticos na Segunda Guerra mundial. Impressiona o fato de que aqueles que sofreram, hoje fazem sofrer. É só acompanhar os fatos que diariamente ocorrem em uma região ainda chamada de Palestina pela maioria dos membros da ONU. Será que se hoje tivéssemos um estado palestino, muita violência teria sido evitada? Ambos os lados têm, pela lei internacional, direito à autonomia. Mas as ambições territoriais, em nome da religião, não o permitem. Novamente as religiões, politicamente bem manipuladas, não o permitem.

    Nacionalismos e religiosidades exacerbados, além de diferenças étnicas, levam hoje a um ódio de difícil compreensão. Está no Levítico: “Não te vingarás e não guardarás rancor”, como já se disse acima. Estes preceitos são dirigidos ao ser humano, e não a grupos, sociedades ou povos. São preceitos do espírito, e não de letras. De nada vale a obediência cega às letras, se não se gera justiça. Esta se encontra muito mais na consciência ética de cada qual, e não em leis editadas por seres humanos que, do alto de sua soberba, se colocam e se colocaram no lugar de Deus. Até quando esses fundamentalistas, de crenças variadas, determinarão o nosso futuro? A maioria dos seres humanos não os quer, mas permanece impassível, conivente com esses grupos cuja única diferença é a roupagem, suas línguas e seus ritos. A verdadeira fé não exige nada disso.

    Fonte: Jornal da USP


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